Page:Transcrição e tradução integral anotada das cartas dos índios Camarões, escritas em 1645 em tupi antigo.pdf/21

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Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 17, n. 3, e20210034, 2022

Portanto, deixa de acreditar nessas coisas. Eu não sou um homem branco, mas, sim, o teu próprio pai. Assim sendo, que não dificultes a futura retirada dos nossos parentes que estão contigo, por causa dos homens maus. Que tragas a todos eles diante de mim. Eu perdoo também àqueles que estão contigo.

Teus avós não podem anular por si sós nossos regimentos. A anulação de uma única lei nossa não é mais como antigamente. Os velhos, segundo eles mesmos, acham que (matar os potiguaras aliados dos holandeses) é uma chacina.

Esses próprios homens maus é que nos obrigaram a fazer essa lei e, então, nós estamos buscando que tu não te desgraces. Vamos, mostra que tu não me repudias como esses homens ruins, estando tu na terra deles!

Eu vou para Paraguaçu, buscando aquela nossa futura morada. Eu não posso deixar desaparecer de nós mesmos as tradições do meu finado pai. Portanto, retira nossos parentes dos homens maus e venham para diante de mim. Não tenham medo de mim. Fazer isso não será difícil para vocês, de modo algum, se tu o quiseres.

Eu envio também esse teu tio (ou ‘primo do teu pai’), o sargento-mor Dom Diogo Pinheiro, para vocês fazerem isso. Que o Senhor Deus ajude vocês nisso, para sua felicidade, conforme a minha vontade.

Hoje, 4 de outubro de 1645.

O pai de todos vocês,

Capitão-Mor Camarão


TRANSCRIÇÃO COM TRADUÇÃO JUSTALINEAR ANOTADA

Kó xe nhe’enga || Estas minhas palavras

aîmondó endébe, || envio-as a ti[1],

nde rubetéramo || como teu pai verdadeiro

gûitekóbo é. || estando, na verdade.

Nde remimotare’yma rupi é serã? || Será que está conforme ao que tu não desejas? (ao teu não desejar?)

Marãnamo? || Por quê?

Nde rubetéramo || Como teu pai verdadeiro

gûitekóbo, || estando eu,

n’aîpotari, || não quero,

christãoramo || na condição de cristão

nde rekóreme, || por estares tu,

nde kanhẽ tenhẽnhã[2], || tua morte sem sentido,

aké so’o[3] || [d]aquele animal

Tupã kugûapare’yma || que a Deus não conhece

rekó[4] îabé. || como o ser [como se fosse].

Nde moapysyk ygûã, || Agrada-te já,

nipó, || porventura,

apŷabaíba irũnamo || com homens maus

21

  1. Esta carta foi escrita um dia após o massacre de Uruaçu, em 3 de outubro de 1645.
  2. O mesmo que tenhenhẽ, ‘ociosamente’, ‘sem um porquê’, ‘sem sentido’.
  3. So’o é, propriamente, o mamífero quadrúpede. Não há, em tupi, palavra correspondente a ‘animal em geral’.
  4. O verbo ikó / ekó (t) assume, por vezes, o sentido de ‘ser’.